
Centro de Documentação e Memória da Obstetrícia
História
Obstetrizes no Brasil: Parteiras e parceiras das mulheres
Em 2005 a Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP) retomou a formação de obstetrizes no contexto de uma nova unidade que foi inaugurada na Zona Leste da Cidade de São Paulo.
A criação da Escola também foi marcada por um conjunto de elementos como localização geográfica em região de alta vulnerabilidade social, proposta de inovação pedagógica –com valorização da interdisciplinaridade e metodologias ativas , fomento a participação da comunidade local e busca de novas formas de administração.
O Curso de Obstetrícia é um dos dez cursos da EACH e partilha com o coletivo da Escola um Ciclo Básico voltado para cidadania e pesquisa. Paralelamente os/as alunos/as cursam disciplinas específicas da profissão, envolvendo áreas de ciências humanas e sociais, biologia e assistência a saúde.
O Curso tem duração de 4 anos e meio em período integral, e reconhecido pelo Conselho Estadual de Educação e atende as exigências do Ministério da Educação para cursos de graduação em saúde. Formamos Obstetrizes que são parteiras profissionais habilitadas para trabalhar – de forma autônoma e em equipes de saúde -nos processos de pré natal,parto e pós parto em diferentes contextos tais como Centro Obstétricos, Casas de Parto,Maternidades e Unidades Básicas de Saúde Pelas leis brasileiras profissionais de saúde necessitam de Registro em um Conselho de Classe da Profissão para que possam exercer sua atividade profissional.
A lei do exercicio profissional da enfermagem(lei n.7498/86) inclui a figura da obstetriz no artigo 6o:
Art.6o. – São enfermeiros:
I- O titular do diploma de enfermeiro conferido por instituicao de ensino,nos termos da lei;
II- O titular do diploma ou certificado de obstetriz ou de enfermeira obstétrica, conferidos no termo da lei.
Apesar do teor da lei, no ano de 2008 quando a primeira turma se formou, o Conselho de Enfermagem se recusou a oferecer o registro profissional.
Este fato desencadeou um grande problema para os formandos que após quatro anos de estudo em uma das principais universidades do País não poderiam trabalhar na profissão que abraçaram.
Este momento foi particularmente desafiador para estudantes e professores do curso pois um complexo cenário se instalou. Os formandos individualmente entravam com ações judiciais para obter o registro e ao mesmo tempo cobravam da universidade uma postura por não ter informado a questão. A justiça decretou que a universidade teria que avisar no site da instituição que fazer o curso não significava acesso ao registro profissional. As pessoas pensavam em desistir do curso e a universidade pensava em fechar o vestibular.
Foi um período desalentador. Alunas, alunos, professores, professoras, familiares sofreram muito. Ainda neste contexto, o Conselho Regional de Enfermagem publicou em sua revista (para mais de 200 mil enfermeiros) uma matéria desqualificando as Obstetrizes. Em eventos eramos hostilizadas, os campos de estágio sofriam pressões,existia dificuldade para conseguir e permanecer em empregos e espalhava-se para todos os lados uma imagem distorcida das Obstetrizes e da profissão: Obstetrizes seriam profissionais não preparadas e a profissão seria algo irregular.
Neste árido cenário professoras e alunas tinham convicções muito fortes: Obstetrizes são importantes para a saúde das mulheres brasileiras que vivem num contexto de violência obstétrica e alta incidência de cesáreas, pessoas querem se formar Obstetrizes e a Universidade oferece um ótimo curso de formação, com a qualidade e excelência da USP. E há legalidade no exercício da profissão. Diante das ameaças de fechamento e extinção decidimos resistir e encontramos grandes parceiros e parceiras que ofereceram apoio para nossa causa: movimento de humanização do parto, movimento feminista,movimentos sociais da zona leste,movimento de saúde,movimento de aids,movimento LGBTT, políticos, intelectuais e mídia. Paradoxalmente também recebemos apoio de boa parte da enfermagem, especialmente das enfermeiras obstétricas que não enxergavam as Obstetrizes como inimigas e sim como parceiras na construção de algo mais importante: a melhoria da assistência a saúde das mulheres. No próprio curso de obstetrícia a maioria das professoras são enfermeiras obstétricas.
Em 2009 constituímos uma associação (AO - Associação de Obstetrizes) que recebeu o nome oficial de Associação de Alunos e Egressos do curso de Obstetrícia e foi fundada como objetivo de defender a profissão no país. Nesse processo algumas professoras procuraram o Ministério Público Federal e em parceria com as alunas iniciamos um longo caminho jurídico que culminou em 2011 com a concessão de uma liminar que concedia a todos os formandos do curso o direito de receber o registro de obstetriz sem que fosse necessário mobilizar ações judiciais. Esta medida foi um momento importante que viabilizou a retomada da esperança e de mais coragem para prosseguir.
Em 2015 ganhamos a ação civil pública e em 2016 a ação foi finalizada! A sentença previu a concessão do registro como Obstetriz, a retirada da matéria que desqualificava as Obstetrizes, a retratação pública e o pagamento de uma indenização de 50 mil reais por danos morais.
Em 2016, após 3 anos de luta da Associação de Obstetrizes, conseguimos a abertura de um concurso público com vagas para Obstetrizes atuarem na prefeitura do Município de São Paulo.
Diante deste percurso, solicitamos autorização do Sr. Exmo Juiz para utilizar os recursos da indenização por danos morais para a produção de três materiais impressos que avaliamos podem contribuir para a restauração da imagem das obstetrizes diante de gestores, profissionais de saúde e da comunidade em geral, reafirmando a sustentação legal para o exercício da profissão.
Aproveitando ainda a oportunidade pensamos que e relevante ao mesmo tempo em que restauramos a imagem das Obstetrizes, oferecer para as mulheres brasileiras informações sobre direitos sexuais e reprodutivos e elementos para enfrentamento da violência sexual,doméstica e obstétrica e orientações sobre cuidados necessários para a mãe e o bebê no decorrer da gravidez e do pés parto.
Por fim destacamos que Obstetrizes são parteiras profissionais, competentemente formadas para o cuidado,mas que tem em sua formação a perspectiva de oferecer um cuidado culturalmente sensível, que atenda as necessidades e realidade socio cultural da mulher e de sua família e esta perspectiva somente é possível para um profissional de saúde que tem disposiãao para a parceria com a pessoa que atende.
Texto: Cruz et all